Em nossa carta do dia 08 de abril, motivados pelo pequeno texto do Rubens Fernandes Junior sobre A Barca #3*, falamos sobre a fotografia inútil. Hoje vamos falar sobre as fendas do acaso de Mayakovsky, também mencionadas no texto. Não somos capazes de escrever a partir da perspectiva do próprio Mayakovsky, mas nossos olhos e corpos entendem muito bem o que o Rubens quis dizer, e é a partir daí que falamos hoje.

Eu, Helena, gosto da palavra fenda porque ela traz em si a ideia da ruptura e, também, da possibilidade de se olhar através. Se damos a uma fotografia a qualidade de fenda, arriscamos dizer que, por meio dela, podemos acessar algo que está além daquilo que, aparentemente, ela nos mostra. Como se a figura vista na fotografia estivesse lá para nos conduzir a algum outro lugar, que não a ela própria. O acaso, no termo de Mayakovsky, me parece algo da natureza dos imprevistos. Da sorte. Da fortuna. Uma fenda que se abre como um presente.

O Marcelo gosta mais do termo usado pelo Sergio Fingermann – artista plástico e pensador, de quem sempre aproveitamos as ideias – “acontecimentos poéticos”. A ideia de ocorrência, de circunstância, de algo que nos permite estar em determinado estado de espírito, mais abertos às sutilezas, parece a ele mais precisa do que a imagem de uma ruptura. Poderíamos estar sempre abertos à poesia.

A Barca é toda construída de fendas ou de imagens poéticas. As figuras presentes na edição não dizem respeito a elas próprias. Elas atuam para que cheguemos aos nossos temas, aos nossos assuntos. Logo no início, uma cachoeira nos indica a força feminina e os fluidos de prazer ou fertilidade. Depois, uma dupla de imagens – peixes à esquerda e um corpo submerso à direita – representa a concepção. Falamos aqui sobre a força feminina? Na sequência, flores à esquerda e, à direita, um menino – a quem não temos acesso e de quem não vemos os traços – atrás de uma cortina. Falamos da infância, de impossibilidades, dos mistérios? Seguimos com os lugares vazios, a criança, as asas, as flores, o anjo, a cama, o labirinto, o espelho, a mulher, a criança, o bicho, a mulher, o bicho, a mão… Por meio da repetição dessas figuras que compõem a narrativa, pretendemos questionar a vida e a morte, as pulsações, os ciclos.

Quando olhamos, pela primeira vez, para uma dessas imagens poéticas, antes mesmo de a percebermos como fenda (ou acontecimento), o que vemos é o estranhamento. Como se, sem ainda alcançar qualquer entendimento, prevíssemos que aquilo que nos foi mostrado, de alguma maneira, nos engana. É desse estranhamento que precisamos, como espectadores, para nos arriscarmos na busca da nova compreensão. Precisamos nos descolar da realidade colocada a nossa frente. Precisamos nos aventurar naquilo que está do outro lado das fendas.

(imagens da Paola Vianna para A Barca #3)

* “Marcelo Greco e Helena Rios têm realizado um trabalho impecável de edição. Uma fotografia inútil, como dizíamos nos anos oitenta, mas potente e diferenciada. ‘As fendas do acaso’ como dizia o poeta Mayakovsky. Vale conferir!”. Texto publicado por Rubens Fernandes Junior, em sua página do Facebook.

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Helena Rios e Marcelo Greco