Cremia

Vitoria Rebuschini e Domenico Marchetti, meus bisavós, faleceram antes do meu nascimento. Eles emigraram para o Brasil em 1928 com as filhas – Francesca, minha avó, e Giulia. Vieram de Cremia, pequena cidade no Lago de Como, norte da Itália.

Domenico, aqui no Brasil, trabalhou como engenheiro de grandes obras. Após a morte da esposa, 15 anos antes da dele, aposentado, ele passou a dividir seu tempo entre o Brasil e a Itália, terra que amava. Passava parte do ano na torre, sua propriedade em Cremia. Neste período ele pintava, desenhava, fotografava, escrevia, estudava. Não os conheci, mas, pelos legados que nos deixaram, sempre estiveram presentes nas casas da nossa família, nas histórias, nos nomes, nos traços físicos. Talvez por isso Cremia sempre tenha feito parte do meu imaginário.

Francesca, minha avó, pintava, como o pai. A casa dela, cheia de história, tinha sempre um cheirinho bom de terebintina. Giulia, irmã da minha avó, escrevia. Dedicou-se a traduzir e organizar muitos dos textos do pai. Em 1999 ela publicou o livro “Memória a duas vozes”, que traz textos dela e as memórias do meu bisavô da época em que ele trabalhou aqui no Brasil. Em 2017, na semana em que lia este livro, meu marido sonhou que tínhamos um filho chamado Domenico Rios Greco. Ainda não pensávamos em ter um filho.

Meu pai se chama Domingos, versão de Domenico em português. E essa era uma das histórias que eu escutava sobre meu bisavô. Domenico tinha uma irmã, Sofia, que já vivia no Brasil quando ele chegou com a família. A Zia Sofia, como é conhecida na nossa família, quis muito que alguma das sobrinhas desse o nome do irmão a um filho. Sempre que uma delas engravidava, contam, Zia Sofia comemorava dizendo que “il Domenico verrà”. Naquela geração, o Domenico não veio.

Alguns meses depois do sonho do meu marido engravidei de um menino, o nosso Domenico. Quando ele tinha um ano e meio de idade, em um daqueles momentos em que parece que somos conduzidos pela vida, fomos à Cremia. Depois de algumas mudanças de planos, resolvemos que passaríamos três semanas no norte da Itália. Talvez o Domenico tenha nos levado até lá.

Eu conhecia a cidade, mas não tinha antes estado ali por um tempo prolongado. Antes da viagem resgatei laços com familiares de lá. Os atuais proprietários da torre que foi de meu bisavô, Sonia e Pietro Mistò, receberam-nos com um carinho que eu não poderia imaginar ou me permitir desejar. Maddalena Bregani, neta de uma das irmãs de meu bisavô, emprestou-nos sua casa e nos deu suporte para a realização deste ensaio. Rino Bregani, muito gentil, levou-nos a Naro.

Ainda antes da viagem, revisitamos alguns dos materiais deixados pelo meu bisavô, em especial as fotografias que ele fez da região do Lago de Como. Criamos um pequeno guia, que nos orientou durante as três semanas que estivemos por lá. As imagens me indicaram lugares onde pude estar e nos quais pude buscar alguma conexão com minha história. Foram as portas de acesso para uma paisagem interior. Foi nestes lugares que pedi permissão de entrada à terra e aos meus antepassados. Foi nas paisagens que busquei o olhar do meu bisavô, a história da minha avó, o imaginário do meu pai e dos meus tios. As superfícies lisas ou harmonicamente crespas do lago; as águas contidas, antigas e claras; as paisagens plácidas, silenciosas, melancolicamente familiares e belas: se emoções fossem águas, seria essa a seiva da minha família paterna.

Este caderno é um diário que deixo para que o Domenico possa conhecer os elos da corrente que o ligam ao trisavô de quem herdou o nome. Espero que este ensaio seja apenas o primeiro sobre a região que circunda a cidade da Cremia. E que me preenche.

Helena Rios, maio de 2020


direção artística e concepção gráfica. Helena Rios e Marcelo Greco
tradução italiano. Elena Fornasari
tradução português. Helena Rios e Sofia Haberland
impressão e acabamento. Gráfica Águia, São Paulo, 2020
imagens. Helena Rios e Marcelo Greco
publicação. rios.greco