Um artista é um ser de canais abertos. É um indivíduo que deve se manter conectado ao seu universo interior – todo o conhecimento que tem sobre si, sua história, suas relações, suas emoções -, às questões de seu entorno – os indivíduos e o contexto político social cultural no qual está inserido – e a tudo aquilo de impalpável, misterioso e inconsciente que o circunda e que também rege seu mundo. O artista, por meio de seus sentidos, recebe estímulos, processa-os em um jogo entre impulso emocional e elaboração intelectual e, depois de maduro, devolve ao mundo o fruto dessa elaboração.

O trabalho de um autor ecoará em maior ou menor grau, com mais ou menos consciência, a maneira como ele se insere e se percebe no mundo. Ao refletir sobre os processos de criação artística e sobre os resultados desse processo, pode-se usar diferentes conceitos para falar sobre como se dá essa relação entre o autor e o contexto do qual faz parte. 

Pode-se falar, por exemplo, em horizontalidade e verticalidade. Esses conceitos nos foram apresentados, junto com os conceitos de espaço branco e casa, pelo Leo Divendal – artista e professor holandês – em seu texto To come home (Para voltar para casa), de 2010.

O movimento horizontal, na criação artística, seria, segundo Divendal, uma ação de expansão, de ampliação de horizontes, de exploração de novos lugares, de aquisição de novas perspectivas. Pode-se dizer que trata-se da conquista de novos territórios – sejam eles concretos ou simbólicos -, trata-se de um alargamento do mundo.

O movimento vertical possibilita uma pesquisa sobre a própria existência. Segundo Divendal, trata-se de estar ‘aqui’ e querer investigar tal presença neste lugar, neste tempo, neste ser determinado. Expandir verticalmente é embrenhar-se, estender-se para o passado e para o futuro, para o céu e para a terra; é força de introspecção.

A casa seria o centro, o cruzamento das linhas vertical e horizontal; a expansão e o aprofundamento, simultaneamente. Divendal pega emprestado o sentido de “lar” proposto por John Berger em seu livro And Our Faces, My Heart, Brief as Photos (E os nossos rostos, meu coração, fugazes como fotografias): “Originalmente, o lar significava o centro do mundo – não em um sentido geográfico, mas em um sentido ontológico”. A casa simbólica de Divendal seria o lugar do equilíbrio, da segurança a partir da qual se torna possível explorar horizontal e verticalmente o universo. 

Já o espaço branco seria uma circunstância potencial de criação, na qual percebe-se a pulsação de algo prestes a acontecer: uma promessa, uma possibilidade, um desabrochar. O espaço branco, de acordo com Divendal, não é algo completamente vazio, desconhecido, sem luzes e sombras (isso seria insuportável); ele é cheio de anseios, de referências; é sustentado pelas vivências anteriores e pelos desejos. Possui magia exatamente porque, de alguma maneira, são conhecidas a sua potência e a sua capacidade de ser cenário para criação. O espaço branco, a tela branca, o palco são necessários para que algo aconteça. O autor precisa estar preenchido por um certo vazio para prestar atenção naquilo que pulsa em si. Essa vibração de algo iminente pode não ser confortável. Lugar de expectativa, ansiedade ou angústia, não é espaço para se estar por longos períodos. É a partir desse espaço branco que se dá a expansão, seja ela vertical ou horizontal.

É natural que, durante a vida de um autor, os movimentos de expansão horizontal e vertical se revezem e, muitas vezes, coexistam. Dizer que um trabalho é mais vertical ou mais horizontal não é um juízo de valor e não se refere à qualidade ou à seriedade de um processo. A horizontalidade e a verticalidade, na criação artística, dizem respeito à maneira como o autor se relaciona com o mundo – interno e externo -; servem também para nos mostrar por quais canais um autor se alimenta artisticamente, se pelo desconhecido de dentro ou de fora de seu corpo.

Esses conceitos de horizontalidade e verticalidade podem ser aplicados a qualquer investigação artística, independente de sua técnica ou linguagem. Como exemplo, traz-se aqui alguns livros de fotografia*:

Klavdij Sluban, fotógrafo nascido na França e criado na Eslovênia, viaja com regularidade e parece extrair dessas explorações a matéria-prima para seu trabalho fotográfico. Entre 2015 e 2016, inspirado pelas viagens do poeta japonês Matsuo Bashō (1644-1694), Sluban caminhou de Kyoto a Tóquio, por quinze dias. No livro Divagation – Sur les pas de Bashō (Divagação – nas pegadas de Bashō, the (M) éditions, 2017), composto por 3 livretos, apresenta sua transcrição das viagens do poeta em fotografias analógicas em branco e preto. O trabalho, belo, poético e consistente, pode ser considerado como um movimento horizontal de criação, já que se configura como a exploração de um novo território, um deslocamento por um caminho horizontal.

Klavdij Sluban, Divagation – Sur les pas de Bashō, the (M) éditions, 2017

O trabalho Haze of Dawn (Névoa do amanhecer, Autopublicado, 2000), de Leo Divendal, mais especificamente as imagens feitas no Mar de Marmara, é outro bom exemplo de processo horizontal de criação. Aqui o deslocamento não se dá por um caminho horizontal objetivo. Divendal senta-se em frente ao mar, fotografa e, em seguida, busca trazer a paisagem para dentro da si, avizinhar-se dos barcos, por meio da aproximação da imagem. O autor amplia as imagens até sua quase desconstrução em matéria pictórica, em grãos coloridos. O deslocamento é do olhar.

Leo Divendal, Haze of Dawn, autoplublicado, 2000

Já o livro Uncle Charlie (Tio Charlie, Editora Contrasto, 2012), de Marc Asnin – fotógrafo americano -, configura-se como um mergulho vertical na relação entre o autor e seu tio Charlie. Aos 20 anos, Marc começa a fotografar o tio. O autor parece ser a única pessoa que se relaciona verdadeiramente com o personagem, que aparenta ter comportamento disfuncional. A matéria-prima para elaboração do livro – fotografias de Marc e relatos de Charlie – é colhida durante 27 anos.

Marc Asnin, Uncle Charlie, Editora Contrasto, 2012

Girls Blue (Azul Meninas, Rocking, 1998) de Hiromix – fotógrafa japonesa – é um relato pessoal da autora, aos 17 anos. Com as imagens, ela conta sobre seu cotidiano e suas relações, investiga a própria existência. Pode-se dizer que o trabalho seja uma expansão vertical na vida da própria autora, em lugar e tempo determinados.

Hiromix, Girls Blue, Rocking, 1998

O livro Abrigo (Editora Origem e Rios Greco, 2020), do Marcelo Greco, pode ser entendido como uma pesquisa simultaneamente horizontal e vertical. Com as imagens, Greco mostra sua experiência a partir da descoberta de uma nova relação afetiva, de um novo território, ao mesmo tempo em que investiga sua própria existência nesse novo universo. A edição termina com o nascimento do filho do autor, o que, do ponto de vista do recém tornado pai e, também do ponto de visto do autor, é certamente uma possibilidade de expansão tanto horizontal quanto vertical.

Marcelo Greco, Abrigo, Editora Origem e Rios Greco, 2020


São Paulo, dezembro de 2021


* Os exemplos mostrados foram também expostos pelo Marcelo Greco em apresentação ao vivo no Instagram, em 19 de setembro de 2021. A gravação está disponível em nossa página no Instagram