N’A Barca somos todos brancos e a maioria de nós é homem (5 mulheres, 14 homens). Em relação à condição financeira e às preferências sexuais, somos ligeiramente mais diversos. O que isso significa?

Estivemos em Tiradentes, na semana passada, durante o 11º Festival Foto em Pauta. Apresentaríamos A Barca #3 e nossos livros – Abrigo e Rios em flor – e era nos questionamentos sobre quem somos que eu estava mergulhada nos dias que antecederam nossa viagem. Temos pensado e conversado bastante sobre essas questões. Gostaria de convidar vocês a refletir comigo. Tenho a impressão de que essa carta dará conta apenas de parte de minhas dúvidas e de que ela trará mais perguntas do que respostas.

Entender as razões da composição do grupo de autores d’A Barca não é difícil… a maioria de nós conheceu o Marcelo nos cursos do MAM. Em geral, em nossa sociedade, apenas representantes de um grupo privilegiado (e branco) pode ter acesso a cursos de fotografia como os que ele ministra no museu. Apenas uma pequena parcela pode dedicar tempo aos estudos e ao desenvolvimento de trabalhos que têm como objetivo, em um primeiro momento, o lazer ou a satisfação de necessidades da alma. Hoje, existem movimentos efetivos de inclusão de pessoas negras ou de baixo poder aquisitivo, no MAM e em outras instituições. Sabemos que será necessário algum tempo para sentirmos os reflexos dessas ações. De qualquer maneira, apenas essa breve colocação sobre como funcionam os privilégios em nossa sociedade, talvez, já seja suficiente para explicar a totalidade branca do grupo de autores d’A Barca.

Mas por que tão poucas mulheres? Os demais grupos de estudo ou desenvolvimento artístico dos quais participei, em geral, possuíam mais mulheres do que homens. Mas A Barca é um grupo antigo: Bernardo Dorf, Márcio Távora e eu, por exemplo, estudamos juntos há mais de 10 anos. O Marcelo, n’A Barca e em seus outros grupos, acompanhou a entrada e a saída de muitas pessoas. Naturalmente, muitos seguem outros rumos artísticos e continuam seus percursos. Mas, certamente, já vimos muitas mulheres abandonarem seus trabalhos artísticos por dificuldades na rotina, descrença no próprio processo, falta de apoio de seus parceiros ou familiares, maiores dificuldades em obter retornos financeiros com suas criações. Esse não é um cenário exclusivo das mulheres, mas é mais frequente para elas, seguramente.

Nossa primeira conclusão: A Barca é um reflexo de nossa sociedade. Mas, claro, a reflexão não termina aí. Não é suficiente perceber que somos consequência de um processo, muito antigo, que nos ultrapassa enquanto indivíduos. Não escolhemos essa realidade, mas já temos informações o bastante para agir de maneira a perpetuá-la ou modificá-la.

Enquanto cidadãos, agimos individualmente regidos por nossas crenças e desejos em relação ao contexto no qual estamos inseridos. Como professores, pensadores, pais, eleitores, membros de uma sociedade etc, podemos, objetivamente, batalhar pelas mudanças almejadas.

Mas, enquanto autores, para quem oferecemos os frutos de nosso trabalho? Atuamos de maneira a alimentar um sistema excludente ou a questioná-lo? Refiro-me, nessa segunda pergunta, sobre a forma como trabalhamos e não sobre a existência objetiva de determinados temas em um trabalho. Nós, Helena e Marcelo, acreditamos, verdadeiramente, no poder da poesia. Acreditamos, antes ainda, na diversidade artística, na pluralidade. E não acreditamos que o correto posicionamento de um autor esteja unicamente vinculado aos temas de seu trabalho. Evidentemente, vemos hoje belíssimos e potentes trabalhos de autores que são, também, ativistas visuais. Imagino, inclusive, que deva ser muito gratificante perceber, no próprio trabalho, alguma ação verdadeira de questionamento e modificação de um sistema opressor. Mas vale refletir que ter como tema de um trabalho artístico populações menos favorecidas, por exemplo, está longe de garantir qualquer movimento de transformação de uma realidade, por mais indesejável que seja ela. Como bem disse Walter Benjamin em sua conferência O autor como produtor (1934), tais trabalhos podem facilmente se transformar em objeto de consumo de um sistema excludente, sem alterar em nada seu funcionamento. Assistimos a atualização da percepção de Benjamin ao longo dos anos. Como exemplos mais recentes, temos as imagens que nos chegam da pobreza no Brasil ou da guerra na Ucrânia. (Vale a leitura do texto de Ronaldo Entler “Retrato falado de uma cobertura de guerra”, publicado essa semana pela revista Zum)

Se trabalhamos, genuinamente, com assuntos que dizem respeito à condição humana, temos alguma chance de nos sentirmos pertencentes a uma sociedade e de nos comunicarmos, também, com pessoas diferentes de nós. E sei que é essa nossa busca. Sei também que é exatamente essa verdade e essa integridade em relação a si e ao mundo que nos atrai em outros trabalhos. Para nós, portanto, essa é uma das características fundamentais de um autor. Mas tenho pensado sobre como um trabalho artístico traz – ou não traz –, em si, essa potência. Falamos a língua de quem? A quem somos acessíveis? Minhas imagens são mesmo capazes de falar tanto de você quanto de mim? Se eu for fiel às minhas crenças, terei um dia essas inquietações resolvidas em meu próprio fazer como artista?

(imagens: Paula Brandão) Esses somos nós durante as duas falas das quais participamos em Tiradentes.

Conhece alguém que gostaria de receber esse conteúdo? Encaminhe esse e-mail. É possível se cadastrar na nossa lista clicando aqui.

Helena Rios e Marcelo Greco