Barca (Barka) é uma palavra egípcia, velha de mais de 6000 anos. O fonema dos dois pictogramas traduzidos em duas sílabas, fácil de pronunciar, chegou até nós, apesar da voga do indo-europeu navis que deu navio e navegação no Império Romano. Barca ficou e também embarcação.

Significava mais do que um transporte no Nilo, era ainda um congregado de mitos e práticas da justiça divina. As barcas de Ísis, a deusa em que o nome é o sussurro da serpente e diz de si mesma eu sou o que é, o que foi e o que será, deixavam os lagos dos templos onde repousavam para realizar julgamentos. Em frente de casas de suspeitados criminosos o seu peso sobre os ombros dos carregadores era tal que o barco tinha de ser apeado. Cumpria-se então o julgamento.

Esta Barca nº 3 traz consigo o ruído cósmico dos mitos, dúvidas, medos, interrogações, mistificações e poesia: o homem no seu melhor. Os mitos persistem no nosso imaginário precisamente por pertencerem a um pensamento pré-lógico a contas com um consciente que se torna o desafio da sobrevivência em termos de cultura. Os olhos veem, mas os olhares pensam, investigam o meio, guardam emoções que, repetidas, se tornam sentimentos. A espécie conservou, escondidos num inconsciente que exila no esquecimento o que faz mal ao corpo, medos e frustrações insuportáveis. O consciente do pensamento lógico não conseguiu definir na linguagem esse contorno que é a matriz do dado, o significante. O dado, diz Lacan, surge sempre armadilhado como representação do que está escondido. A linguagem, como o olhar, não são neutros, entendem e agem sob pressão do que se esconde e que desconhecem.  (Não é qual a doença que uma pessoa tem, mas qual a doença que tem a pessoa, dirá um neurologista). O corpo é físico e químico, trabalha com informação e energia que lhe vem de fora. Os dados são a devolução cifrada dessa informação, pensamentos e palavras, alertas, fuga e luta. O homem é simbólico quando pensa, quando fala, quando escreve, mesmo quando luta ou foge. Vê o mundo, a materialidade como signos. É o desejo, que é também uma formulação do poder que cria regimes de símbolos que representam e definem essa realidade que olha, usa o significado para classificar e dividir e sofre com a indeterminação que rodeia essa classificação e o impulso alegórico que impõe a definição. Naturalmente, nos sistemas de signos há uma zona de indeterminação, com um símbolo em estado puro, capaz de suportar qualquer significado simbólico, é tudo ou nada, tem valor zero, mas proporciona o pensamento simbólico. Os estados criativos sugerem um certo abandono da racionalidade porque demasiado presos à emoção e, para o filósofo José Gil, surgem nas criações significantes flutuantes quase impulsos alegóricos de energia e desejo. No pensamento mítico, diz ainda, oferecem a explicação, – alteridade, (ser e ser outro ao mesmo tempo), conflito, destruição violenta, solução.

Neste conjunto de imagens, Juliana Monteiro é Cassandra e pitonisa. Diz-nos que o que se expressa é o mito, a interrogação, a alteridade das coisas e do pensamento, aponta obsessões e medos que fazem a nossa condição de gnósticos divididos. Poderia dizer que a matriz é a homeostasia, o dispositivo que nos faz sentir se estamos bem ou mal, mas da realidade do corpo nada sabemos, nem o tomamos como slogan imperativo, como o fizeram religiões e morais ou as ciências humanas que as substituem. A homeostasia, condição e alerta da sobrevivência só impõe o medo e a fuga, o prazer e a aceitação; o sistema de signos que a explicam apela à exclusão do amor e do pathos no corpo, à libertação da sua influência no espírito. Viver é complicado.

Fala-se aqui de vida ameaçada e da morte inevitável, mas como contiguidade. Da violência da destruição e reconstrução e do inconformismo, – as manifestações do desejo são sempre desordem e transgressão. Fala-se de erotismo que alucina no que se olha, (o anjo de negras asas e a menina rodeada de flores como morta, Helena Rios); a morte anunciada na série de Daniel Monteiro; os circuitos de vida e morte de uma flor, (Juliana Corsi), do desejo, (Rafael Define ou Paola Vianna. – as flores, órgãos sexuais das plantas também definham).

Fala-se, pois, de morte e desejo diretamente sugerida ou numa sedução de estranheza, (a Ofélia morta de Ricardo Almeida Prado). Fala-se também de ocultamento e mistério, (ainda Helena Rios, Giovama Pasquini ou Fábio Guarda), por vezes como indeterminação, através de flou, névoa ou simulação, (Leco Jucah, Regis de Gasperi, com sombras e espelhos). Ou com Marcelo Greco na contracapa, abrindo um portal para o enigma e o mistério e André Cunha: o menino, como um polvo, deixando as águas quase em contraluz. Ou, ainda, Leonardo Tumonis poetando sobre a indeterminação do cosmos.

A estranheza insinua-se quando o código de leitura é alterado em alguma coisa que nos é familiar. Pode apelar à identificação, mas, também, ao pânico e horror como nas sedutoras e terríveis imagens de Caio Leão. Em todo o caso, abre janelas sobre o mistério (André Cunha) ou ao ocultamento, (Gi Hasson, Helena Rios). Há muitos processos fotográficos no caminho da estranheza.

Todas estas fotografias são resultado de ideias prévias, são pensadas, partem de uma intenção, um programa. Não são imagens diretas de voyeur. Nesse sentido são imagens de poder, aquele poder que o saber confere. Implicam descodificação, são enigmáticas na sua estranheza, que pode tocar a temática ou a teoria da corrente que indiciam. Assim Márcio Távora ou Lucas B. Pacífico navegam entre a Land Art e os novos topógrafos norte-americanos, sem intenção antropológica e alteração geológica, apenas anúncio de metodologia a ultrapassar no tempo do digital.

De novo Juliana Monteiro, Se é a primeira vez que vejo essas imagens porque é que elas falam tanto de mim? É esse o efeito mágico da Fotografia, despertar o que o corpo esconde, memórias, imagens, traumas e desejos. A Fotografia também é terapia porque no cut o olhar é emotivo e deixa fluir os significantes flutuantes da sua própria e interrogativa sedução pelo que vê. Os significantes flutuantes são mediadores de códigos, É a ele que Barthes chama punctum, ferida que se rasga, que se sente. São elas, esses cortes, que traduzem o pulsar quase mudo do Cosmos e do sujeito.

Maria do Carmo Serén
maio de 2022


Maria do Carmo Serén nasceu no Porto (Portugal), foi jornalista e professora e, de 1997 a 2006, foi Coordenadora de Formação e Comunicação do Centro Português de Fotografia (C.P.F.). Historiadora e comentarista de arte e fotografia, integra com frequência cursos, colóquios e encontros, tendo publicados textos – nomeadamente sobre análise fotográfica – em revistas, antologias, álbuns ou dicionários de especialidade, em Portugal, na Espanha, na França, na Grã-Bretanha, nos Brasil e nos Estados Unidos. Tem publicado para diversas instituições e editoras obras de análise de fotografia, pintura, história, e ciências sociais.