Semana passada, Rubens Fernandes Junior – jornalista, curador e crítico de fotografia – postou em sua página no Facebook uma imagem que continha nossa A Barca #3, o livreto de cartas de Leo Divendal e a carta que enviamos a ele, Rubens, com esses materiais. Com a imagem, veio o texto: “Marcelo Greco e Helena Rios têm realizado um trabalho impecável de edição. Uma fotografia inútil, como dizíamos nos anos oitenta, mas potente e diferenciada. ‘As fendas do acaso’ como dizia o poeta Mayakovsky. Vale conferir!”. Um texto curto, mas cheio de janelas para longos entendimentos.
Tomamos a “fotografia inútil” como um elogio. O texto todo, aliás. Hoje falaremos sobre essa inutilidade e, para isso, convocamos o Paulo Leminsky (já que eu não poderíamos escrever nada melhor do que aquilo que ele publicou em 1986).
Inutensílio
Paulo Leminski
A ditadura da utilidade
A burguesia criou um universo onde todo gesto tem que ser útil. Tudo tem que ter um para quê, desde que os mercadores, com a Revolução Mercantil, Francesa e Industrial, substituíram no poder aquela nobreza cultivadora de inúteis heráldicas, pompas não rentáveis e ostentosas cerimônias intransitivas. Parecia coisa de índio. Ou de negro. O pragmatismo de empresários, vendedores e compradores, mete preço em cima de tudo. Porque tudo tem que dar lucro. Há trezentos anos, pelo menos, a ditadura da utilidade é unha e carne com o lucrocentrismo de toda essa nossa civilização. E o princípio da utilidade corrompe todos os setores da vida, nos fazendo crer que a própria vida tem que dar lucro. Vida é o dom dos deuses, para ser saboreada intensamente até que a Bomba de Nêutrons ou o vazamento da usina nuclear nos separe deste pedaço de carne pulsante, único bem de que temos certeza.
Além da utilidade
O amor. A amizade. O convívio. O júbilo do gol. A festa. A embriaguez. A poesia. A rebeldia. Os estados de graça. A possessão diabólica. A plenitude da carne. O orgasmo. Estas coisas não precisam de justificação nem de justificativas.
Todos sabemos que elas são a própria finalidade da vida. As únicas coisas grandes e boas, que pode nos dar esta passagem pela crosta deste terceiro planeta depois do Sol (alguém conhece coisa além- Cartas à redação). Fazemos as coisas úteis para ter acesso a estes dons absolutos e finais. A luta do trabalhador por melhores condições de vida é, no fundo, luta pelo acesso a estes bens, brilhando além dos horizontes estreitos do útil, do prático e do lucro.
Coisas inúteis (ou “in-úteis”) são a própria finalidade da vida.
Vivemos num mundo contra a vida. A verdadeira vida. Que é feita de júbilo, liberdade e fulgor animal.
Cem mil anos-luz além da utilidade, que a mística imigrante do trabalho cultiva em nós, flores perversas no jardim do diabo, nome que damos a todas as forças que nos afastam da nossa felicidade, enquanto eu ou enquanto tribo.
A poesia é u principio do prazer no uso da linguagem. E os poderes deste mundo não suportam o prazer. A sociedade industrial, centrada no trabalho servo-mecânico, dos USA à URSS, compra, por salário, o potencial erótico das pessoas em troca de performances produtivas, numericamente calculáveis.
A função da poesia é a função do prazer na vida humana.
Quem quer que a poesia sirva para alguma coisa não ama a poesia. Ama outra coisa. Afinal, a arte só tem alcance prático em suas manifestações inferiores, na diluição da informação original. Os que exigem conteúdos querem que a poesia produza um lucro ideológico.
O lucro da poesia, quando verdadeira, é o surgimento de novos objetos no mundo. Objetos que signifiquem a capacidade da gente de produzir mundos novos. Uma capacidade in-útil. Além da utilidade.
Existe uma política na poesia que não se confunde com a política que vai na cabeça dos políticos. Uma política mais complexa, mais rarefeita, uma luz política ultra-violeta ou infra-vermelha. Uma política profunda, que é crítica da própria política, enquanto modo limitado de ver a vida.
O indispensável in-útil
As pessoas sem imaginação estão sempre querendo que a arte sirva para alguma coisa. Servir. Prestar. O serviço militar. Dar lucro. Não enxergam que a arte (a poesia é arte) é a única chance que o homem tem de vivenciar a experiência de um mundo da liberdade, além da necessidade. As utopias, afinal de contas, são, sobretudo, obras de arte. E obras de arte são rebeldias.
A rebeldia é um bem absoluto. Sua manifestação na linguagem chamamos poesia, inestimável inutensílio.
As várias prosas do cotidiano e do(s) sistema(s) tentam domar a megera.
Mas ela sempre volta a incomodar.
Com o radical incômodo de urna coisa in-útil num mundo onde tudo tem que dar um lucro e ter um por quê.
Pra que por quê?
Texto publicado no livro Anseios cripticos, Ed. Criar: Curitiba, PR, 1986.
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Helena Rios e Marcelo Greco